20/01/2012
Nilton Viana
da Redação
|
O sociólogo belga François Houtart - Foto Roosewelt Pinheiro/ABr |
A
crise que vivemos é mais profunda e bastante diferente da que
conhecemos nos anos 1929 e 1930, afirma o professor François Houtart.
Segundo ele, sua dimensão evidentemente está vinculada ao fenômeno da
globalização. Porém, ressalta que a atual crise não é nova. Não é a
primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será a
última. Houtart acredita que o mais importante, e isso é diferente dos
anos 1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos de crises. E
afirma: a causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio
capitalismo. “A crise financeira é devida à lógica do capital, que tenta
buscar mais lucros para acumular capital, que é, dentro dessa teoria, o
motor da economia”.
Em entrevista ao Brasil de Fato,
Houtart fala também sobre as várias facetas desta crise, inclusive a
crise alimentar, a qual, segundo ele, faz parte da mesma lógica. “A
combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são
vinculadas”.
Brasil
de Fato – O mundo vive hoje uma crise mundial, que tem afetado
principalmente os Estados Unidos e a Europa. Como o senhor avalia esse
cenário?
François Houtart – Eu
penso que, primeiro, se trata de uma crise do sistema econômico
capitalista, que é muito similar à crise dos anos de 1929-1930 e também a
muitas outras crises cíclicas do sistema capitalista onde há
subprodução, subconsumo e eventualmente crises financeiras.
A
crise que vivemos hoje me parece mais profunda e bastante diferente da
que conhecemos nos anos 1929 e 1930, porque, primeiro, sua dimensão
evidentemente está vinculada ao fenômeno da globalização. Isso significa
que hoje há um efeito muito mais global do que nos anos de 1929-1930 e
que evidentemente afeta o conjunto da economia. Já está afetando os
países emergentes e de uma maneira ou outra afetará outros países do
mundo. Porém, o mais importante, e isso é diferente dos anos 1929 e
1930, é essa combinação com vários tipos de crises. Por exemplo, a crise
alimentar, que foi conjuntural nos anos 2008-2009 e que correspondeu à
crise do capital financeiro. Porque o capital financeiro tem buscado
novos lugares de especulação e o lugar foi a alimentação, com
conseqüências terríveis. E a crise alimentar é também estrutural e não
somente conjuntural, porque precisamente afeta toda a maneira de fazer a
agricultura. E a introdução cada vez mais forte do capital dentro da
agricultura, com a concentração de terras, gera uma contrarreforma
agrária mundial e o desenvolvimento de monocultivos, com todas as
consequências ecológicas de destruição de ambiente e também de
destruição humana; por exemplo, a exclusão dos camponeses de suas
terras.
A combinação da crise econômica com a
alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas. Na verdade, a crise
financeira é devida à lógica do capital, que tenta buscar mais lucros
para acumular capital, que é, dentro dessa teoria, o motor da economia.
Se o capital financeiro é mais proveitoso do que o produtivo, ele faz a
lei da economia mundial como é hoje. Assim, essa é evidentemente a
lógica do capitalismo que provoca a crise financeira, que tem efeitos
econômicos, porque tem efeitos sobre emprego, crédito e toda a economia.
Porém, é essa mesma lógica que está provocando a crise alimentar,
porque, por uma parte, há uma especulação – o preço do trigo, por
exemplo, tem dobrado 100% em um ano, menos de um ano, por razões
puramente especulativas.
|
A inclusão do capital na agricultura teve como uma de suas consequências
a exclusão dos camponeses de suas terras - Foto: P.Casier/CGIAR
|
E quais são as conseqüências sociais dessa crise?
Na
verdade, as consequências sociais da crise financeira são sentidas além
das fronteiras da sua própria origem e afetam os fundamentos da
economia. Desemprego, custo de vida crescente, a exclusão dos mais
pobres, a vulnerabilidade das classes médias, expandindo a lista de
vítimas no mundo. Não é apenas um acidente no percurso, ou apenas de
abusos cometidos por alguns atores econômicos que precisam ser punidos.
Somos confrontados com uma lógica que corre ao longo da história
econômica do século passado. O desenrolar dos acontecimentos sempre
responde à pressão das taxas de lucro. A crise que vivemos hoje não é
nova. Não é a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que
não será a última.
A seu ver, qual é a principal causa dessa crise mundial?
A
causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio
capitalismo, que torna o capital motor da economia. E seu
desenvolvimento – essencialmente, a acumulação – leva à maximização do
lucro. Se a financeirização da economia favorece a taxa de lucro e se a
especulação acelerou o fenômeno, a organização da economia como um todo
continua dessa forma. Mas um mercado não regulamentado capitalista
conduz inevitavelmente à crise. E, como indicado no relatório da
Comissão das Nações Unidas, é uma crise macroeconômica.
Um dos graves problemas da humanidade hoje é a fome. Como fica essa questão frente a esse cenário de crise?
A
crise alimentar tem dois aspectos, um cíclico e um estrutural. O
primeiro manifestou-se com o aumento dos preços dos alimentos em 2007 e
2008. Sim, para explicar o fenômeno, houve alguma base eficiente, como
alguma diminuição fraca em reservas de alimentos, mas a principal razão
foi de natureza especulativa, em que a produção de agrocombustíveis não
ficou imune (etanol de milho nos Estados Unidos). Assim, o preço do
trigo na Chicago Board (Bolsa de Chicago) aumentou para 100%, do milho
98% e do etanol, 80%. Durante esses anos, uma parte do capital
especulativo passou de outros setores para investir na produção de
alimentos, na busca por lucros rápidos e significativos.
Consequentemente, segundo o diretor da FAO, em geral, a cada ano, em
2008 e 2009, mais de 50 milhões de pessoas ficaram abaixo da linha da
pobreza e o total de pessoas que viviam nessa situação em 2008 atingiu
um valor nunca antes conhecido – de mais de um bilhão de pessoas. Essa
situação foi claramente o resultado da lógica do lucro, a lei
capitalista do valor.
O segundo aspecto é
estrutural. É a expansão durante os últimos anos da monocultura,
resultando na concentração da terra, ou seja, uma verdadeira
contrarreforma. A agricultura familiar foi destruída em todo o mundo sob
o pretexto de sua baixa produtividade. Na verdade, as monoculturas têm
uma produção que às vezes pode ir até 500% ou mais de 1000%. No entanto,
dois fatores devem ser levados em conta. A primeira é a destruição
ecológica dessa forma de produzir. Florestas são removidas, solo e água
contaminados pelo uso maciço de produtos químicos. Agricultores são
forçados a deixar suas terras e há milhões que têm de migrar para as
favelas das cidades, aumentando a crise urbana, e aumentando a pressão
da migração interna, como no Brasil, ou externa, como em muitos outros
países.
Então a fome no mundo não tem nada a ver com a produção de alimentos, com a capacidade de produzir?
Não.
Não tem nada a ver com a produção. A questão é somente especulativa. É a
Bolsa de Chicago que fixa os preços internacionais dos grãos.
E
como o senhor vê as afirmações de alguns estudiosos de que o planeta,
com uma população na casa dos 7 bilhões de pessoas, se torna incapaz de
produzir alimentos para nutrir tanta gente?
Isso é totalmente falso. Segundo a FAO, teoricamente a Terra pode facilmente nutrir 10 ou 12 bilhões de habitantes.
E a questão energética, também faz parte desse cenário de crise?
A
crise de energia vai além da explosão conjuntural dos preços do
petróleo e faz parte do esgotamento dos recursos naturais explorados
pelo modelo de desenvolvimento capitalista. Uma coisa é clara: a
humanidade vai ter que mudar a fonte de sua energia nos próximos 50
anos. Os picos de petróleo, urânio e gás podem ser discutidos em termos
de anos precisos, mas ainda assim sabemos que esses recursos não são
inesgotáveis e que as datas não estão longe. Com o esgotamento,
inevitavelmente vem o aumento dos preços das commodities, com
todas as consequências sociais e políticas. Além disso, o controle
internacional de fontes de energia fósseis e outros materiais
estratégicos é cada vez mais importante para as potências industriais,
que não hesitam em usar a força militar para se apropriar deles. É no
contexto de escassez de energia no futuro que se insere parte do
problema dos agrocombustíveis. Diante da expansão da demanda e da
redução esperada em recursos energéticos fósseis, há uma certa urgência
de se encontrar soluções. Como novas fontes de energia exigem o
desenvolvimento de tecnologias ainda não muito avançadas (como a solar
ou à base de hidrogênio) e outras soluções são interessantes, mas
economicamente marginais ou não rentáveis (mais uma vez, a solar e a
eólica), a dos agrocombustíveis pareceu interessante.
Mas a produção dos agrocombustíveis traz também graves consequências.
A
produção de agrocombustível é feita na forma de monocultura. Em muitos
casos, isso envolve a remoção de grandes florestas. Na Malásia e na
Indonésia, em menos de 20 anos 80% da floresta original foi destruída
pelas plantações da palma e eucalipto. A biodiversidade é removida, com
todas as consequências sobre a reprodução da vida. Para produzir é usado
não só muita água, mas um monte de produtos químicos, como
fertilizantes ou pesticidas. O resultado é uma poluição intensiva de
água subterrânea, dos rios que desembocam no mar, e um perigo real de
falta de água potável para as populações. Além disso, os pequenos
agricultores são expulsos e muitas comunidades indígenas perdem suas
terras ancestrais, causando uma série de conflitos sociais, até mesmo
violentos. O desenvolvimento de agrocombustíveis corresponde à
negligência das externalidades ambientais e sociais, típicas da lógica
do capitalismo.
E como o senhor vê a questão climática nesse cenário atual?
A
crise climática é bem conhecida e as informações estão se tornando mais
precisas, graças a várias conferências da ONU sobre clima,
biodiversidade, geleiras etc. Enquanto o atual modelo de desenvolvimento
continuar emitindo gases de efeito-estufa (especialmente CO2),
destruindo os sumidouros de carbono, ou seja, sítios naturais de
absorção desses gases, especialmente florestas e os oceanos, a crise
continuará. A pegada ecológica é de tal ordem que, de acordo com
estimativas, em 2010, em meados de agosto, o planeta tinha esgotado a
sua reprodução natural. Além disso, de acordo com o relatório do Dr.
Nicholas Stern para o governo britânico, em 2006, se as tendências
atuais continuarem na metade do século existirão entre 150 e 200 milhões
de migrantes climáticos, e os mais recentes números são ainda mais
elevados.
E como o senhor avalia as medidas adotadas pelas elites e governos para tentar superar essas crises? E quais são as soluções?
A
primeira solução é a do sistema. Alguns, principalmente preocupados com
a crise financeira, propuseram mudar e punir os responsáveis. Essa é a
teoria do capitalismo (teoria neoclássica em economia), que vê elementos
positivos na crise, porque eles permitem a liberação de elementos
fracos ou corruptos para retomar o processo de acumulação em bases
saudáveis. Atores são alterados, e não se muda o sistema. Evidentemente
não é solução. A segunda visão é propor regulamentos. É reconhecido que o
mercado regula a si mesmo e que os organismos nacionais e
internacionais têm necessidade de executar essa tarefa. Os Estados e
organizações internacionais devem ser envolvidos. O G8, por exemplo,
propôs certos regulamentos do sistema econômico global, mas ligeiros e
temporários. Em vez disso, a ONU apresentou uma série de regulamentações
muito mais avançadas. Propôs a criação de um Conselho de Coordenação
Econômica Global, em pé de igualdade com o Conselho de Segurança, e
também um painel internacional de especialistas para acompanhar
permanentemente a situação econômica global. Outras recomendações
tratadas foram a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário e,
também, maiores requisitos de reservas bancárias e um controle mais
rígido das agências de notação de crédito. A profunda reforma das
instituições de Bretton Woods foi incluída, bem como a possibilidade de
se criar moedas regionais em vez de ter como referência única o dólar.
Os regulamentos propostos pela Comissão Stiglitz para reconstruir o
sistema financeiro e monetário, apesar de algumas referências a outros
aspectos da crise, tais como clima, energia, alimentos – e apesar do uso
da palavra sustentável para qualificar o crescimento – não têm a
profundidade suficiente para fazer a pergunta: para que reparar o
sistema econômico? Para desenvolver, como antes, um modelo que destrói a
natureza e é socialmente desequilibrado? É provável que as propostas
para reformar o sistema monetário e financeiro serão eficazes para
superar a crise financeira, e muito mais do que o que foi feito até
agora, mas é suficiente para responder a desafios globais
contemporâneos? A solução é dentro do capitalismo, um sistema
historicamente esgotado, mesmo que tenha ainda muitos meios de
adaptação. A gravidade da crise é tal que devemos pensar em
alternativas, não somente em regulações.
E, quais seriam, por exemplo, essas outras alternativas?
Questionar
o próprio modelo de desenvolvimento. A multiplicidade de crises que
foram exacerbadas nos últimos tempos é resultado da lógica de mesmo
fundo: uma concepção de desenvolvimento que ignora as “externalidades”
(danos naturais e sociais); a ideia de um planeta inesgotável; o foco no
valor de troca em detrimento do valor de uso; e a identificação da
economia com a taxa de acumulação de lucro e do capital que cria,
consequentemente, enormes desigualdades econômicas e sociais. Esse
modelo resultou em um crescimento espetacular da riqueza global, mas seu
papel histórico se perdeu, devido à sua natureza destrutiva e da
desigualdade social que resultou. A racionalidade econômica do
capitalismo, escreve Wim Dierckxsens, não apenas tende a negar a vida da
maioria da população mundial como também destrói a vida natural.
Temos
que discutir alternativas ao modelo econômico capitalista prevalecente
hoje e os meios para rever o próprio paradigma (orientação básica) da
vida coletiva da humanidade sobre o planeta, conforme definido pela
lógica do capitalismo, que hoje é global. A vida coletiva é composta por
quatro elementos que chamamos de base, porque as exigências são parte
da vida de toda sociedade, desde as mais antigas até as mais
contemporâneas: a relação com a natureza; a produção da base material da
vida física, cultural e espiritual; a organização social e política
coletiva; e a leitura do real e autoenvolvimento dos atores na sua
construção da cultura. Ou seja, cada sociedade tem essa tarefa para
realizar.
Mas as alternativas necessariamente passam pelo envolvimento do conjunto da sociedade organizada, dos movimentos sociais.
Exatamente.
As alternativas são tão importantes que não vão chegar por si só. É
somente pela pressão dos movimentos sociais, movimentos políticos
também, que podemos esperar chegar a redefinir os objetivos fundamentais
da presença humana no planeta e o desenvolvimento humano no planeta. E
isso significa transformar a relação com a natureza. Passar da
exploração ao respeito. Significa outra definição da economia. Não
somente produzir um valor agregado senão produzir as bases da vida. Da
vida física, cultural, espiritual de todos os seres humanos no planeta.
Isso é a economia. Porém, isso não corresponde à definição do
capitalismo. Também é preciso generalizar a democracia a todas as
instituições, não somente políticas e econômicas mas também na relações
humanas, relações entre homens e mulheres etc. É necessário também não
identificar desenvolvimento com civilização ocidental e dar a
possibilidade a todas as culturas, religiões, filosofias de participar
dessa construção. Isso é o que chamo de construir o bem comum da
humanidade, que é a vida; assegurar a vida, a vida do planeta e a vida
da humanidade. Isso é um projeto alternativo, que pode parecer utópico.
Porém não é utópico porque existem milhares de organizações e movimentos
sociais que já trabalham para transformar esses aspectos da vida comum
da humanidade, para melhorar a relação com a natureza, para ter outro
tipo de economia, para ter uma participação, uma democracia que seja
participativa e para renovar a cultura. Existem muitas iniciativas. Isso
posso chamar de construção do socialismo. Porque socialismo não é uma
palavra. É um conteúdo. E eu penso que devemos redefinir o conteúdo do
socialismo.
Como o senhor analisa a América Latina neste contexto da crise e qual é o papel dos movimentos sociais?
É
muito interessante porque a América Latina é o único continente do
mundo onde temos tido alguns avanços. Não ainda na opção de novo
paradigma, nova orientação fundamental, porém, pelo menos avanços, que
não existem em outros continentes até agora. Mas não é algo generalizado
na América Latina. Há alguns países que só reproduzem o sistema, com
sua dependência ao capital internacional, particularmente do norte do
continente americano. São países como México, Colômbia, Chile, Panamá,
Costa Rica, Honduras etc. São países onde a burguesia local está
totalmente vinculada com o sistema internacional e, nesse sentido, não
tem outro projeto senão um projeto muito repressivo contra as
populações.
Subordinação total.
Exatamente.
Há uma segunda realidade, que são os países que podemos chamar de
“adaptações ao sistema”. E aí existem dois tipos de países. Há os que
dizem: sim, o sistema necessita de mudanças fundamentais e devemos nos
adaptar à lógica do capitalismo. E para se ter mais justiça social e
repartir parte do lucro, como já dizia Marx, com o rápido avanço das
forças produtivas, temos um aumento dos lucros e da destruição da
natureza. Nesse tipo de desenvolvimento se inserem Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai, que possuem programas sociais eficazes. Com
resultados indubitáveis porque milhões de pessoas saíram da pobreza, o
que não podemos desprezar, porém, esse modelo não transforma
profundamente a sociedade; isso representa apenas uma redistribuição de
parte do lucro. Não podemos dizer que é uma mudança de paradigma.
Entretanto, há países como Venezuela, Equador e a Bolívia, que têm outro
discurso, o do socialismo do século 21, que pelo menos faz uma alusão a
uma transformação fundamental. Pelo menos no Equador e na Bolívia,
entre o discurso e a prática eu vejo grande avanços, em que as práticas
dos governos seguem uma orientação das demandas sociais apresentadas
pelos movimentos sociais.
Então, neste contexto de crise, os países que estão mais vulneráveis sofrem mais as consequências?
Não
estou seguro. Teoricamente pode-se dizer que sim, esses países serão
mais afetados em médio prazo. Porém, no momento é igual em todas as
partes. Mas, evidentemente, os países mais vinculados ao sistema serão
mais afetados em médio prazo. Entretanto, desgraçadamente, países como
Venezuela e Bolívia também são indiretamente dependentes do sistema
global e sofrerão as consequências. O que eu acho que é cedo demais pra
se dizer, com diz Samir Amin, que eles conseguiram fazer uma desconexão.
Não, não conseguiram. Mas é óbvio que as economias mais vinculadas à
economia do Norte sofrerão as consequências a curto prazo.
No
caso da América Latina, uma maior integração dos países seria uma
alternativa frente a esse cenário mundial? O papel do Estado é
fundamental neste contexto?
Absolutamente.
Mas, para encerrar a tipologia, eu penso que a Venezuela é um país que
avança para um novo modelo, onde as mudanças são mais aprofundadas. O
papel do Estado não pode ser concebido sem levar em conta a situação dos
grupos mais marginalizados socialmente, os sem-terra, as castas mais
baixas ignoradas por milênios, os povos indígenas da América e os
excluídos de ascendência africana; e, nesses grupos, as mulheres são
muitas vezes duplamente marginalizadas. A expansão da democracia também
se aplica para o diálogo entre os movimentos políticos e sociais. A
organização de instâncias de consulta e diálogo pertence ao mesmo
conceito, respeitando a autonomia mútua. O projeto de um conselho de
movimentos sociais na arquitetura geral da Alba é uma tentativa original
nessa direção. O conceito de sociedade civil muitas vezes utilizados
para esse fim ainda é ambíguo, porque ela é também o lugar da luta de
classes: há realmente uma sociedade civil de baixo e de cima e o uso do
termo de forma não qualificada permite muitas vezes a criação de uma
confusão e a apresentação de soluções que ignoram as diferenças sociais.
Por outro lado, as formas de democracia participativa, como os
encontrados em vários países latino-americanos, também entram na mesma
lógica da democracia em geral. Todas as novas instituições regionais
latino-americanas, como o Banco do Sul, a moeda regional (o sucre) e a
Alba, serão objeto de atenção especial na direção de propagação da
democracia. E o mesmo vale para os outros continentes.
François Houtart é sociólogo e professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É
diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve trabalho na
Ásia, África e América Latina.
Fonte: Jornal Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br/node/8647