UNIVERSALIDADE
E CRISE DOS DIREITOS HUMANOS
Tarso
Genro
A Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 valorizou o indivíduo, tomado na sua
singularidade e como integrante de uma coletividade, na condição de
sujeito de um Direito Internacional específico que levou os Direitos
Humanos a uma posição relevante na agenda internacional.
A Declaração Universal
vem precedida e impulsionada pela Revolução Francesa, cuja
Declaração, adotada em 1789, impacta os velhos regimes e inspira a
jovem nação americana, cuja Declaração Americana, em 1791, já
firma uma concepção holística de todos os direitos humanos como
universais e indivisíveis.
Desde então, os direitos ali consolidados se refletiram nos novos
instrumentos de proteção, globais e regionais, bem como nas
Constituições e legislações nacionais.
As políticas voltadas
para buscar sua efetividade, inclusive em momentos de guerra,
salvaram milhares de vidas humanas, mas a sua aplicabilidade plena,
já dentro do amplo conceito de Direito Humanitário, foi sempre
fraudada pela força normativa dos fatos. Coube “a
Henry Dunant o papel de grande criador do DIH. Em 24 de junho de
1859, o jovem empresário suíço se dirige a Solferino, norte da
Itália, a fim de encontrar Napoleão III para obter auxílio
financeiro para investimentos realizados na Argélia. Na ocasião,
Dunant presencia o terrível combate entre franceses, italianos e
austríacos, que deixou, ao final do dia, mais de 40.000 vítimas,
entre mortos e feridos”.
A força
política e moral da Declaração Americana de 1791 influiu
decisivamente na concepção de um Direito Internacional Humanitário,
que depois é acompanhado de ações políticas com o mesmo objetivo,
que vão encontrar abrigo definitivo na Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948.
A sua crise - tomada como
momento agudo da “não efetividade” da Declaração Universal no
atual período histórico - está vinculada à própria impotência
relativa do Direito, desacompanhado de uma cultura republicana das
elites dominantes, para socializar as conquistas democráticas das
Luzes / do Iluminismo. O avanço é lento. O próprio Direito
Humanitário já nasce “flexibilizado” pela força militar dos
países dominantes no cenário mundial. A proteção social, que é
conquista plebeia nas democracias ocidentais, hoje também já é
“flexibilizada” pela expansão do domínio do capital financeiro
e pela mudança na natureza do desenvolvimento, nos processos do
trabalho e no conteúdo dos contratos.
Na chamada
“pós-modernidade”, a degradação da economia mundial reflete,
internamente nos países, na depreciação das instituições de
proteção social e humanitária, em geral, e a “primeira linha
desta transformação está no direito ao trabalho, que
historicamente começou sendo um direito individual e, com o correr
da revolução industrial e da modernidade, terminou sendo um direito
social e solidário; hoje se transformou em um direito personalíssimo
de sobrevivência da pessoa, que o submergiu em uma luta
individualista e até selvagem, não só pelo posto de trabalho, mas
também pela aceitação de condições que roçam a humilhação”.
Proteção do mundo do trabalho e proteção aos direitos humanos
compõem uma mesma totalidade - em crise - no âmbito dos regimes
democráticos ocidentais, internamente e nas relações de força que
os países ricos impõem aos territórios ex-coloniais.
O
realismo político dos países, politica e militarmente mais fortes,
sempre foi muito claro na sua política externa. Estes países sempre
foram alheios à conservação de instituições que defendem os
Direitos Humanos quando esta proteção fragiliza o seu domínio
econômico. Um exemplo é a dupla face da potência americana,
exemplarmente exposta quando da tentativa de golpe militar (1981) na
transição espanhola: “na noite do golpe de 23 de fevereiro, o
vice-presidente dos Estados Unidos nesse momento, Alexander Haig,
declarou: ‘é um assunto interno de Espanha’. Quando o
vice-presidente da democracia mais importante do mundo diz que um
golpe de Estado militar é um assunto interno, isso é
aterrorizante”.
O continente americano já
havia se antecipado em alguns meses à Declaração Universal dos
Direitos do Homem (dezembro de 1948), com a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem (abril de 1948). A Declaração
Americana proclamou direitos e deveres correspondentes, pavimentando
o caminho para a adoção da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José, em 1969).
A Declaração Universal
foi alvo de críticas desde a sua concepção. As censuras
voltavam-se para o fato da Declaração não possuir força
vinculante e tampouco estipular mecanismos de garantia para o seu
cumprimento. A ausência de força vinculante revelaria já a
intenção dos Estados mais fortes de preservar sua soberania, em
detrimento da efetivação dos direitos. Sempre esteve presente, a
partir de 1948, uma contradição entre a expansão econômica
imperial e o seu estatuto jurídico novo, de caráter
humanista e abrangente.
Teóricos como Hersch
Lauterpacht criticaram duramente a Declaração neste ponto,
afirmando que um documento que “não impunha o mínimo sacrifício
à soberania estatal” não poderia impor-se sequer como uma
“obrigação moral”. Durante muito tempo os juristas da área do
Direito Internacional insistiram na necessidade de normativas
obrigatórias, que contassem com mecanismos de petição individual
para reportar as violações.
Por outro lado - numa
visão mais benigna da sua emergência - a Declaração Universal
também tem sido considerada como responsável por abrir caminhos
para a formulação de outras cartas de direitos com caráter
vinculante. E mais do que isso: servir de parâmetro para os
Estados, quando da elaboração de suas Constituições, políticas
públicas e legislações internas.
Principalmente a
partir de 1948, a ONU passou a valer-se do discurso dos Direitos
Humanos a fim de conferir valor moral às suas ações. Dezenas
de instrumentos internacionais, acordados no pós-1948, mencionam a
“Declaração Universal” como fundamento primordial, ao lado da
Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1945.
O enfraquecimento da ONU,
em função da sua permanente instrumentalização política pelas
“grandes potências”, desgastou o discurso de proteção dos
Direitos Humanos, sempre presente na retórica dos juristas
democráticos e dos movimentos de oposição às formas de arbítrio
dos Estados potencialmente violadores destes direitos.
Até hoje, portanto,
pairam questionamentos quanto à contribuição real da Declaração
Universal, para a proteção dos direitos humanos no mundo. A simples
textualização (de direitos) em um documento com escasso efeito
prático teria levado, para alguns acadêmicos, a uma hipertrofia da
dimensão simbólica dos direitos humanos e à banalização do seu
conceito, não raramente instrumentalizados pelos países dominantes
na cena política mundial.
As “manobras
virtuosas”, para contornar essa fragilidade, tomaram força em 1966
com o Pacto dos Direitos Civis e Políticos e com o Pacto dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A partir de então, os
anos que se seguiram foram permeados pela emergência de inúmeras
convenções.
Elas se dedicaram a
“destrinchar” determinados direitos, previstos na Declaração
Universal e transmutá-los em forma de documentos vinculantes, como a
Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio
(1948), Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951),
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1961), Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (1968), Convenção Sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989), Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (2006), dentre outras.
Esta especificação do
sistema global e regional de proteção aos direitos humanos encontra
na Declaração Universal a sua origem. É ela que confere unidade ao
sistema, atuando como um catalizador comum. Todas as convenções
que se seguiram à Declaração Universal tentaram, em alguma medida,
suprir as deficiências daquela carta de direitos, no que tange à
sua obrigatoriedade.
Um dos maiores desafios
políticos, no entanto, é a adesão, por parte dos Estados, às
convenções sobre direitos humanos, que se seguiram à
Declaração Universal, já que dessa adesão depende a
possibilidade de responsabilização pelo seu descumprimento.
Os desenvolvimentos mais importantes do período foram as distintas
Convenções já citadas e os mecanismos para fazê-las efetivas: os
órgãos das Convenções (comitês) e o conselho de DDHH. Estão
neste conteúdo, também, os relatores especiais (sobre direito dos
migrantes, trafico, tortura, discriminação, etc).
A questão da atualidade
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, porém, está
centrada hoje em duas “crises” ou dois impasses contemporâneos,
de importância estratégica para a sua efetividade. A “crise do
Direito”, que acompanha este processo, é ao mesmo tempo crise da
democracia moderna: crise da representação parlamentar e crise do
capitalismo global, projetada a partir dos anos 70, que milita para
neutralizar o Direito Humanitário como um todo. A resistência à
legitimação do atual “Sistema Interamericano de Direitos
Humanos”
está situada, certamente, neste contexto.
Vejamos os “impasses”:
1º
impasse: a força normativa supranacional exercida pelos EEUU
(hoje também pela China e Rússia), acima do Direito Público
Internacional e independentemente das Declarações de Direitos, das
Convenções e dos Tratados Internacionais, tornou-se mais evidente e
desafiante. Sua maior comprovação recente, no ocidente, são as
prisões arbitrárias, torturas e julgamentos sumários feitos pelos
EEUU, após o “11 de setembro”, que foram aceitos pelos regimes
democráticos do mundo com uma naturalidade surpreendente e
preocupante.
O episódio da aceitação
da tortura pelo Presidente Bush, vocalizada de forma escancarada e
sincera, proporciona, neste quadro, também uma desmoralização
completa da superioridade das construções democráticas do
Ocidente, de onde são originárias as políticas e os princípios do
Direito Humanitário, em geral, e dos Direitos Humanos em particular.
Este impasse é conhecido.
Vou me reportar mais a
fundo a um 2º impasse. A partir da transição dos
regimes autoritários para a construção democrática, uma das
grandes tarefas do período foi iniciar a implementação de uma
“Justiça de Transição”.
Este segundo “impasse”
traduz toda a problemática da efetividade e concretude destes
direitos. Trata-se - através da Justiça de Transição - menos de
punir e mais de sinalizar, a idéia da “não-repetição”,
nos países do continente onde vários tipos de regimes de força
cometeram mais do que meras arbitrariedades: implantaram regimes de
terror de Estado ou se socorreram destes métodos para aplacar a
“subversão” da resistência ou mesmo a pretensão de poder, dos
que pretendiam revolucionar a ordem ditatorial existente.
Conceituada pela ONU como
o conjunto de mecanismos para tratar o legado histórico da
violência, seus elementos centrais são a verdade e a memória
(conhecimento dos fatos e resgate da história); a reparação
(tanto econômica, pelo imperativo dever do estado de indenizar os
perseguidos, quanto moral, pelo dever de registrar na história); o
reestabelecimento pleno do preceito de justiça e do devido
processo legal (direito da sociedade de responsabilizar
judicialmente os que violaram os direitos humanos e cometeram crimes
contra a humanidade); e a reforma das instituições
(vocacionar os órgãos de segurança e de Justiça para a vida
democrática permanente).
No Brasil, a Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça implementou um programa de Justiça
de Transição para o Brasil, com sucesso, embora limitado pela
natureza “conciliada” da transição democrática no país.
Neste processo, sempre,
Justiça, Direito e Política marcam encontro e
interagem através de ações do Estado e de um discurso público
fundado na nova racionalidade democrática “pós-ditaduras”. É
uma racionalidade avançada, mas sujeita à transição conciliada e
ao abrigo jurídico, na Lei da Anistia, ensejado pelos próprios
violadores dos direitos humanos.
Aspecto muito relevante,
jurídica e politicamente, é que o projeto das “Caravanas da
Anistia”, com julgamentos nos locais onde as violências ocorreram,
além de promover transparência e publicidade aos trabalhos e
critérios da Comissão (que é um foro específico da Justiça de
Transição) pede desculpas pelo Estado, invertendo o conceito
de que a “anistia é o perdão para os vencidos”.
Ora, o Estado de Direito
não nasce democrático: sua fundação histórica - pelo contrário
- é uma racionalização do despotismo esclarecido, para dar
previsibilidade a um contrato político que vai, processualmente,
democratizando-se, como considera inclusive a doutrina mais
conservadora.
A moderna Teoria
Constitucional consagra, num primeiro momento, a formulação
hegeliana de que o Estado é a realidade da liberdade concreta.
Depois, passa pela visão schmittiana do executivo como guardião
da Constituição. Finalmente, desemboca nas novas dogmáticas
jurídicas e no reconhecimento das formas de auto-aplicabilidade de
direitos constitucionais, considerados não somente como normas
programáticas, mas como normas auto-aplicáveis a cada
caso concreto.
Em apenas dois anos –
2007 e 2008 - cerca de 20 mil pedidos de anistia foram
apreciados. É um número similar à totalidade dos processos
julgados nos seis primeiros anos
da Comissão, criada em 2001. A média das remunerações mensais,
que chegou a ser próxima a R$ 6 mil, depois foi harmonizada
com os valores pagos na previdência social, reduzindo a
inaceitável diferença de valores entre os beneficiados de diversas
origens sociais e profissionais.
Esta maior celeridade dos
pedidos de reparação permite aos cidadãos, atingidos pelos atos de
violência da repressão estatal, receber o pedido de desculpas do
Estado, em vida, estimulando a reconciliação da nação. Não
é o Estado que está perdoando os que “erraram” ou foram
“criminosos”. A inversão, assim, do conceito tradicional de
anistia, embora cristalizado na transição controlada, é um momento
positivo de uma Justiça de Transição que celebra os direitos
humanos.
A audiência pública
sobre o alcance das normas de anistia realizada em 17/06/2009 - para
debater se ela atingia ou não os que cometeram o crime de tortura -
promoveu uma acesa discussão na sociedade e colaborou para a
superação da mal intencionada leitura de que a anistia é um
instrumento da “amnésia” histórica.
O princípio da dignidade
da pessoa humana, que está inscrito em todas as normas jurídicas
que rejeitam a tortura como meio de prova medieval, como assevera
Canotilho, é uma “derivação política” dos direitos
sociais.
Esta derivação é
orientadora da agenda da democracia substancial, que, no nosso país,
encontra-se em processo de construção.
A
Justiça de transição é um dos elementos fundamentais do devir
desta nova substancialidade,
que se reporta, hoje, à “radicalização da democracia”. Ela
significa aproximar os direitos fundamentais da vida cotidiana de
todos os cidadãos.
Isso significa, também, criticar a estética da morte, que hoje
assola os meios de comunicação e a “cultura de massas” e
igualmente esclarecer o senso comum que a pura violência estatal
contra qualquer tipo de criminalidade - política ou comum - só
reproduz mais violência e insegurança.
Outro fato lapidar foi o
1º Encontro das Comissões de Reparação e Verdade da América
Latina, ocorrido em 19/11/2008, no Rio de Janeiro, que promoveu a
integração de políticas comuns na América Latina e trocas de
experiências entre os diversos países.
Por fim, em 2008 o fato
marcante foi o ato de anistia, no Congresso Nacional da OAB daquele
ano, ao presidente João Goulart -, deposto pelo golpe de 64 -, fato
conscienciosamente omitido pela “grande mídia” que, no passado,
apoiara ostensivamente o golpe militar. Restava pendente a demanda de
uma condenação simbólica integral do regime autoritário por parte
do Estado Brasileiro, algo que ainda não se havia produzido
oficialmente. Anistiando o Presidente deposto foi reparada a
indignidade da sua deposição ilegítima.
Ganhou a democracia e a
sociedade brasileira.
Elemento central deste fortalecimento foi também a compreensão de
que não se trata de tornar “vilões” da História os que, à
época, julgavam por convicção que o golpe era necessário e
“patriótico”, nem tornar heróis em massa os que se opuseram a
ele. Trata-se, isto sim, de fazer emergir na claridade da vida toda a
desumanidade que vem do arbítrio e da violência ilegítima.
Existem outras
experiências de Justiça de Transição. O paradigma argentino,
relativo à Justiça de Transição, numa primeira etapa,
caracterizou-se por buscar a aplicação do Direito Penal Comum, numa
modalidade de persecução praticamente “minimalista”. Numa
segunda etapa, cessaram as persecuções criminais, com
exceção de alguns delitos como os de sequestro de crianças,
período que foi ordenado pela vergonhosa “anistia ao inverso”
dos principais crimes cometidos pelos agentes do regime: a lei do
“punto final”.
Numa terceira etapa,
a partir de 1999, apoiado numa forte pressão política, o movimento
para acabar com a impunidade propiciou uma histórica decisão da
Suprema Corte daquele país: em 2005, foi declarada a
inconstitucionalidade da lei do “punto final”. A partir desta
corajosa decisão do seu Poder Judiciário, o Estado argentino passou
para uma posição de “persecução maximalista”, ampliando o
espectro da busca de responsabilização de todos os autores das
barbáries cometidas naquele país.
A referência ao
paradigma argentino é importante, pois este foi um dos países em
que os direitos humanos foram mais vilipendiados na América Latina,
ao lado do Chile e do Uruguai. Nestes países, o Estado
comprometeu-se de forma homogênea com a violência ilegal e
criminosa, apoiado num sistema de normas, que permitia a
expedição de ordens de “aniquilamento” de dissidentes e
insurgentes.
Aqui o desenvolvimento de
uma Justiça de Transição foi travado pelos compromissos políticos
firmados na migração “suave”, da ditadura para a democracia, o
que proporcionou sua lenta evolução. Até hoje, nas instituições
do Estado permanecem os que, à época, cometeram violências e atos
de tortura na ditadura ou serviram-se dela para ascender na
burocracia estatal ou nas carreiras políticas, o que também é
fruto da “transição conciliada”.
Esta é a causa maior,
portanto, de que tenhamos ainda hoje uma forte corrente que
interpreta a Constituição a partir das cláusulas daquele contrato
político “ficto”, pelo qual quem rompeu com a ordem democrática
da Constituição de 46 também absolve
a si mesmo.
Ensejou-se, a partir daí, na abordagem da Constituição de 88, um
“constitucionalismo sem hermenêutica”, que recusa a construção
de um constitucionalismo interpretativo e normativo,
capaz de elevar o Estado de Direito a um patamar superior de
civilidade jurídica.
A tese do “não olhar
para trás”, por isso, é um convite para não olhar para frente
com olhos abertos. É um convite à cegueira, que quer fazer esquecer
que a “auto-anistia” não pode abranger a tortura, que não tem
qualquer resíduo de “ato político”, mesmo quando ela é
“legalizada”, como foi pela doutrina Bush.
A questão da
atualidade dos DDHH está, hoje, flagrada na América Latina, na
questão da efetividade da Justiça de Transição. É ela
que faz a mediação entre a doutrina dos DDHH, como
doutrina universal, e as regras internas que recebem
esta doutrina, internamente aos respectivos países, e as fazem
efetiva.
Para que haja
efetividade é preciso que a sua doutrina entre e domine o terreno da
Jurisdição democrática. Um papel central da jurisdição e sua
independência como instrumento de controle da legalidade do poder e
de garantia diante de seus desvios: garantia da jurisdição
constitucional sobre a validade das leis, da administrativa sobre a
validade dos atos da administração, da penal diante dos abusos e
arbitrariedades delituosas dos titulares dos poderes públicos”.
Isso, até agora, não ocorre aqui no Brasil, no que concerne
aos Direitos Humanos, pelo menos quando se trata da violência
repressiva de caráter político exercida pelo Estado.
A compreensão
majoritária nos meios judiciais, até agora, foi que: primeiro,
houve “anistia recíproca”; segundo, que esta foi
sustentada por um contrato político inscrito na Constituição
Federal de 1988, orientado pela Lei de Anistia de 1979; e terceiro,
que o Estado Democrático de Direito assimila, sem pudor, tal
compreensão da anistia – ou seja, os que deram sustentação à
violação dos Direitos Humanos poderão “anistiar a si mesmos” –
mesmo que isso implique no ingresso, na ordem jurídica democrática
em montagem, de um traço essencial de um regime de exceção:
a designação autoritária de quem perdoa e de quem é
perdoado.
Com esta visão do
Direito é possível acolher a versão – mesmo sem premissas
válidas - da suposta “igualdade”, em valor e
responsabilidade, entre os supostos “vencedores” e
os supostos “vencidos”, no contexto da ruptura com a democracia.
As consequências são graves, pois implica em concluir que a ordem
democrática pode ser rompida a partir da força, pela expectativa de
que já estão dados os critérios políticos do futuro perdão.
Retomemos a doutrina
universal dos DDHH como fonte inspiradora de um novo passo -
como diz Boaventura de Souza Santos - de “democratização da
democracia”, no caminho infindável da utopia democrática, que
nunca se realiza plenamente, pois a utopia é um caminho e não um
ponto de chegada.