07/02/2010
 Estado: problema e  soluções
 A crise econômica internacional terminou  de projetar o Estado no centro dos debates não apenas econômicos, mas políticos  e ideológicos. Ser "estatista" tinha se tornado um dos piores palavrões, ao lado  de "populista". Um remetia à regulação da economia, e à indução do crescimento  pelo Estado, enquanto o outro, às políticas sociais redistributivas. 
Há  quase um século – mais precisamente, há 9 décadas – o Estado tinha passado a  assumir um sinal positivo, diante das conseqüências da crise de 1929.  Unanimemente atribuída ao liberalismo econômico, as tres correntes que surgiram  ou se fortaleceram a partir dali – o keynesianismo, o socialismo soviético e o  fascismo – atribuíram papel estratégico e permanente ao Estado. Foi no  esgotamento do ciclo longo expansivo do capitalismo que as teses anti-estatistas  – hibernadas durante muito tempo – voltaram à baila.
Elas estavam  sintetizadas na tese reaganiana de que "O Estado não é a solução, é o problema."  A perda do ritmo de expansão das economias e o surgimento da chamada  "estagflação" (estagnação com inflação) foi atribuído centralmente ao Estado,  para o qual foram dirigidas as baterias do grande capital e dos seus porta-vozes  na academia, no foros econômicos e na imprensa. De forma resumida, as regulações  que limitariam a livre circulação do capital seriam os fatores da recessão e os  freios para uma retomada do desenvolvimento econômico.
Vitoriosos, os  (neo)liberais promoveram uma gigantesca operação de desqualificação do Estado e,  sintonizado com ele, da política, das relações de poder, dos partidos, das  alternativas coletivas. E, automaticamente, a exaltação das virtudes do mercado,  que passaram a monopolizar a idéia de "dinamismo", de "alocação virtuosa de  recursos", de "sociedade de oportunidades", de "liberdade econômica", de  "modernização econômica", de "desenvolvimento tecnológico".
"Estatista"  passou a ser palavrão, desqualificador, ao lado de "populista". O retiro do  Estado representou expropriação de direitos, devastação do nível de emprego, das  empresas nacionais, se expandiu como nunca a precarização das relações de  trabalho, o desemprego, a concentração de renda, a exclusão social, a pobreza e  a miséria. As distâncias e as contradições entre o centro do mundo e a periferia  aumentaram exponencialmente, os continentes do Sul regrediram nas condições de  vida da massa da população, que vive nessa região do mundo.
Menos Estado,  não significou mais cidadania, mais dinamismo econômico, nada disso. Representou  mais mercado, um mercado controlado por grandes monopólios, pelo grande capital  financeiro. Representou menos cidadania, porque menos direitos.
O combate  da direita contra o Estado se dá contra os elementos de regulação da livre  circulação do capital – entrada e saída de capitais dos países, menos impostos,  flexibilização para contratar força de trabalho nas condições que os empresários  entendam, privatização de patrimônio publico, entre outros. O Estado que eles  gostam e que se manteve, é o que lhes fornece subsídios, isenções, créditos,  perdões de dívidas. Em suma, Estado mínimo para a grande maioria dos explorados,  oprimidos, discriminados. E Estado máximo para o grande capital e o grande  empresariado.
A crise econômica internacional demandou fortemente a ação  do Estado, ao lado da falência do mercado como alocador de recursos, ao mesmo  tempo em que sua capacidade para reimpulsar o desenvolvimento se revelou falsa.  No Brasil, a grande virada na política governamental - a partir da segunda  metade do primeiro mandato de Lula, mas claramente definida no segundo – mudou o  papel do Estado, na concepção e na ação concreta. Foi o grande agente que  permitiu o novo ciclo expansivo da economia, a consolidação das políticas  sociais e o enfrentamento dos efeitos da crise econômica  internacional.
Os discursos de Lula e da Dilma refletem esse resgate do  Estado brasileiro, que estão fortemente presentes no documento básico  apresentado ao Congresso do PT. Bastou, para que a mídia empresarial levantasse  os seus alertas sobre os riscos de um Estado excessivamente forte, do  "estatismo", de que o programa da Dilma a colocaria à esquerda do governo Lula e  os riscos que isso representaria.
O consenso em relação ao Estado mudou  com o governo Lula. Como Dilma conta no livro que organizamos com o Marco  Aurélio Garcia ("Brasil, entre o passado e o futuro", coedição da Boitempo com a  Perseu Abramo, com artigos, pela ordem do índice, de Emir Sader, Jorge Mattoso,  Nelson Barbosa, Marcio Pochmann, Luiz Dulci, Marco Aurélio Garcia e Dilma  Rousseff), no momento do lançamento do PAC, ela foi chamada ao Congresso para  explicar a participação do Estado, mas quando foi lançado o "Minha casa, minha  vida", isso não voltou a ocorrer. Foi se avançando na consciência do papel  indispensável do Estado.
The Economist lamenta a fraqueza do  liberalismo econômico no Brasil, considerando que os dois candidatos mais  importantes teriam concepções similares, distantes do liberalismo. Alegam que a  principal razão seria o voto obrigatório que, segundo eles, teria como  conseqüência um eleitorado favorável à participação do Estado, porque os pobres  – a grande maioria – tenderiam a pedir mais Estado, que é a fonte dos seus  direitos, das políticas sociais redistributivas, a quem eles podem apelar quando  sentem injustiças, etc. etc. (Razão, por si só, para que fôssemos a favor do  voto obrigatório.) 
Bastou os alarmes disparados pela imprensa e as  reações se fizeram sentir, na direita e na própria esquerda. Naquela, tentar  transformar esse tema em um eventual risco, em um fator de instabilidade, de  mais tributação, em limitações ao "mercado", em mais gastos públicos, etc. Em  suma, tentar fortalecer a pauta da direita: menos Estado, menos impostos, mais  mercado.
Se o Brasil hoje é uma sociedade menos injusta é, em grande  medida, pela ação do Estado brasileiro. Se o Brasil é hoje um país com grande e  prestigiada presença internacional, é pela ação do Estado brasileiro. Se  resistimos à crise de forma muito positiva, é graças ao Estado  brasileiro.
A maior discussão hoje é aquela sobre o tipo de Estado e,  extremamente vinculada a ela, sobre o tipo de sociedade que precisamos e  queremos. Voltar a fortalecer o papel do Estado, como foi feito até aqui,  revelou-se indispensável para retomar o desenvolvimento, fortalecer as políticas  sociais e enfrentar em melhores condições os efeitos da crise.
Mas o  Estado forte que precisamos é o Estado que cada vez mais se centra na esfera  pública, deslocando seu eixo da financeirização a que estava condenado com a  hegemonia inquestionada do capital especulativo no seu interior. Trata-se de  reformar o Estado, debilitando a esfera mercantil e fortalecendo a esfera  pública, isto é, transferindo para a esfera dos direitos o que havia sido  privatizado, sobretudo direitos essenciais, como os de educação, saúde,  comunicação, cultura, habitação e outros serviços essenciais.
Estado  forte é o que estende o reconhecimento da cidadania a setores cada vez mais  amplos da sociedade, até que todos os brasileiros se sintam e sejam realmente  cidadãos – sujeitos de direitos. Governava-se o Brasil para um quarto ou um  terço da população, o restante sendo considerados "excedentes" pelo mercado.  Esse era um Estado fraco, não apenas porque abriu mão de patrimônio público  mediante privatizações a preço de banana, mas também porque era um Estado  excludente, para uma minoria, com instituições estatais enfraquecidas, com  serviços públicos sem recursos, que arrecadavam recursos prioritariamente para  pagar a divida publica, transferindo recursos do setor produtivo para o  especulativo.
Um Brasil democrático requer um Estado centrado na esfera  pública, que centralmente universalize direitos, consolide a soberania nacional,  fortalece as alianças regionais e do Sul do mundo, que potencialize nossas  energias e fortaleça os que até aqui foram maiores vitimas da globalização  neoliberal.
As pressões da direita – e, em especial do seu segmento  midiático – são para que a esquerda se assuste com as acusações de "estatismo".  Não temos que nos assustar, como não nos assustamos com as de "populismo" e  seguimos estendendo as políticas sociais, que são o maior bastião de apoio e  legitimidade do governo. Quer a direita que não disponhamos dos instrumentos  para acelerar o desenvolvimento do país, para canalizar os investimentos cada  vez mais para a esfera produtiva, para seguir estendendo as políticas sociais,  agora plenamente para o campo da habitação, do saneamento básico, da  universalização da banda larga na internet.
Como disse Dilma na  entrevista do livro mencionado, não são os empresários os que defendem a  retração do Estado, mas os ideólogos que pretendem falar no seu nome. Pelo sim  ou pelo não, estamos seguros – como disse, com plena consciência The  Economist – o povo quer mais Estado, porque sabe, por experiência própria,  que é quem garante seus direitos, na contramão do mercado que, ao contrário, só  acentua a concentração de renda e a exclusão social.
 Postado por Emir Sader às  11:35