Hoje, o Brasil volta seus olhos para 45 anos atrás. Entre 31 de março e 1º de abril de 1964, forças militares deram o golpe de Estado que abriu um período de 21 anos de ditadura.
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Durante décadas, partidos de esquerda, movimentos sociais, pequenos e combativos grupos de ex-presas e presos políticos, movimentos de direitos humanos, Igrejas progressistas e uns poucos mais mantiveram erguida a bandeira do direito à memória e à verdade. Para as elites econômicas que conceberam e financiaram o golpe, para os setores reacionários da mídia e das Igrejas que o prepararam e justificaram, para os militares que dele participaram e de cujas benesses usufruíram, a palavra de ordem era simplesmente o esquecimento.
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Vez por outra, esse esquecimento pretendido era quebrado por uma ou outra manifestação isolada de vozes militares não-oficiais. Falar sobre o assunto já incomodava, dar explicações sobre o passado era ficar numa defensiva quase envergonhada. Afinal de contas, construiu-se desde as negociações sobre a Lei de Anistia de 1979, que fará 30 anos neste 2009, o argumento de que “anistia era para os dois lados, precisamos agora olhar para a frente”. Tradição imposta pela correlação de forças naquele período da ditadura, sintetizada na versão oficial e jurídica do esquecimento.
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Ao longo dos anos de conquistas democráticas, foi ficando insustentável a retranca do esquecimento. As manifestações de defesa da ditadura e do arbítrio foram ganhando uns poucos aliados em setores direitistas das Forças Armadas. Uma ou outra Ordem do Dia no “aniversário da Revolução” era divulgada para sinalizar que ainda havia na alta caserna sentimentos de defesa deste período triste da história. Alguns militares da ativa passaram a participar, de forma mais ou menos ostensiva, de atos promovidos por clubes militares e outras organizações da velha guarda.
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A disputa pela história, a reconstituição de uma época que já estava com sua historiografia oficial consolidada, as conquistas de reparação moral, política e financeira no plano legislativo e da ação executiva federal e dos Estados, as primeiras ações de responsabilização de torturadores pelo assassinato e danos físicos e morais às pessoas torturadas, o compromisso do governo federal (tanto na gestão FHC quanto na gestão Lula) de avançar na sua política de direitos humanos, tudo isso contribuiu para o atual grau de acirramento de ânimos que cerca a fatídica data do 31 de março/1º de abril.
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Livros, teses de mestrado e doutorado, filmes, peças de teatro, editoriais de jornais, matérias jornalísticas na TV, eventos públicos estão hoje marcados pela polêmica. Avança a luta pelo direito à memória e à verdade. No plano internacional, consolidam-se decisões, como a da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de que crimes contra a humanidade, e a tortura em particular, são imprescritíveis. Em outros países sul-americanos caem anistias autoconcedidas pelos outrora vitoriosos golpistas. Agora, no começo deste mesmo mês de março de 2009, a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) aprovou este mesmo entendimento jurídico, já adotado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em recente ação movida junto ao Supremo Tribunal Federal (STF): “Na presente quadra histórica de nossa já consolidada democracia, não consideramos adequada uma leitura da Lei de Anistia que abrigue excludentes de responsabilidade dos agentes que praticaram crimes contra a humanidade no período da ditadura militar”, diz a AMB.
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A opinião expressa inúmeras vezes pelos ministros Tarso Genro e Paulo Vanucchi nesta mesma direção ganha corpo no interior do atual governo, ainda que vozes discordantes empalideçam o debate com argumentos obscurantistas. Mas está assentada nos compromissos de educação para os direitos humanos a principal diretriz, da qual a responsabilização dos agentes é mero instrumento, a de destampar a panela de pressão em que se transformou o silêncio sobre esse período, e liberar toda uma reflexão crítica sobre essa história que nos assegure, no presente e no futuro, que a democracia e os direitos fundamentais da pessoa humana não sejam atingidos pela truculência de golpes de Estado e da violência institucional.
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Hoje, a verdade continuará vencendo a mentira. O 1º de abril não será mais do que brincadeira para pregar peças aos amigos. O 31 de Março será revisitado, todos defendendo o direito à memória, enquanto alguns lutarão pelo direito à verdade, e outros lutarão pelo privilégio da mentira.
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Renato Simões *, Jornal do Brasil * Renato Simões é secretário nacional de Movimentos Populares do PT e conselheiro do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
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